sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Barrado Pro Bastardos

— Duas meias pro Bastardos Inglórios! — Disse eu a moça da bilheteria do cinema, com uma voz firme e forte.
— Carteirinha, por favor. — Pediu a moça, sem braço, da bilheteria.
Junto ao documento entreguei o dinheiro também. A moça olhou, olhou, sussurrou alguns números — noventa e um, vinte e cinco, dez — por um acaso eram os números da minha chegada ao mundo. Ela fez contas, elocubrou e por fim disse:
— Senhor, você não tem idade para ver esse filme!
— Porra, mas eu faço dezoito só daqui a duas semanas! E até lá o filme vai estar com certeza fora de cartaz. — Puto estava eu, mas me controlei. O melhor foi a cara de desprezo dela, tipo um: “foda-se” como e “eu com isso”. Além de não ter um braço ela não devia ter coração, ou talvez tenha um coração tão diminuído, reprimido e ofendido por anos de xingamentos e preconceitos. O legal é que todos esses anos de encruamento do coração dela vieram com aquele olhar de menosprezo e reprovação acompanhados por suas grossas sobrancelhas erguidas. Fiquei meio que rendido, a única resposta, coerente a situação, fora:
— Tudo bem... Eu posso conversar com o gerente? — Falei meio que cabisbaixo meio sem emoção, me preparando para enfrentar o chefão.
— Pode! Ele esta ali ao lado! — Apontando com a sua cabeça o gerente que estava numa das outras bilheterias. Ele devia ser mais gordo do que eu, moreno, parecia um árabe, devia estar pela casa dos cinqüenta e sete, tinha cara de certinho, dava para ver pela sua barba bem feita, pelas suas roupas bem ajeitadas. Ele estava esparramado a cadeira me encarando. Fui até outra janela de vidro, cheguei perto daquele fone escroto para me pronunciar com o sujeito:
— Boa noite! — Disse eu, ele respondeu acenando com a cabeça. — O caso é o seguinte: eu queria ver Bastardos Inglórios. Só que eu só faço dezoito daqui a duas semanas... — Tentei fazer uma cara de desespero, mas pela resposta dele acho que não deu certo.
— Só com dezoito completos! — Disse o árabe.
— Mas eu estou no mês do meu aniversario! Só faltam duas semanas! E com certeza até lá o filme já vai estar fora de cartaz...
— Só com dezoito completos! — Disse o sarraceno me cortando a fala.
— Porra, que coisa escrota! — Falei meio puto.
— Regras são regras! — Dirigiu-me o gerente com o tom forte, tentando-me por de volta aos eixos.
— Tá bom, mas eu poderia lhe mostrar outra visão, para você me deixar ver o filme?
— Claro! Vamos lá, me convença! — Me mostrando um sorriso cheio de maldade, lançando-me um olhar de reprovação.
— Bem, começo eu dizendo que entendo a razão pro filme ser dezoito anos, talvez seja pelo exagero de violência e sangue usado com maestria pelo Tarantino, coisa que já lhe é comum em muito de seus outros filmes. Mas não consigo achar isso tão pior do que os tiros que ouvimos todos os dias dos morros e das favelas. Então, a meu ver, acho que a cidade do Rio de Janeiro, assim como as outras grandes cidades com alto nível de violência e criminalidade, deveriam ser inadequadas a menores de dezoito anos? Pois nós já vivemos o que vemos nas ficções através das películas trazidas pelos cinemas, DVDs e internet. Ou então deveríamos censurar os meios de propaganda e informação que vinculam a violência a nós? O que tu achas pior a nossa realidade violenta ou uma ficção violenta? Acho que pra você deva ser a ficção, pois a realidade é incensurável. Também entendo que regras são regras, mas às vezes até um juiz concede a não acusação a alguns em detrimento da sua boa defesa. Regras existem para nos auto-regularmos, só que a flexibilidade dos regulamentos também deixa os cidadãos felizes, pois se todas as regras fossem seguidas à risca ninguém poderia ser feliz pelo menos uma vez na vida. Alguma vez em sua vida você não fora barrado? Essa é a segunda vez que o meu acesso à cultura me é impedido por causa de não ser apropriado a minha idade. A primeira vez foi no show do Motorhead, e segunda foi, ou será agora, não podendo ver o filme de um diretor o qual eu gosto muito. É uma situação chata, pois o acesso à cultura nesse país já é para poucos, pois é cara e de difícil acesso. E agora tu queres me limitar deste acesso, há duas semanas deu atingir a maioridade, mesmo sabendo que vivenciamos coisas piores, e que nada vai mudar em mim daqui a duas semanas! E que este filme não irá mostrar nada que me deixe abalado por nunca ter visto ou que eu já não tenha visto coisas iguais; e mesmo sabendo da flexibilidade que um juiz concede a um indivíduo que fora erroneamente culpado. E agora tu, meu atual juiz desta corte, que veredicto tu pretendes me dar?
Um tanto surpreso, chocado, o mouro assim disse:
— Quatorze reais! — Eu lhe entreguei o meu dinheiro, ele me entregou os ingressos, lhe dei um “boa noite e muito obrigado” e fui me embora indo ligar a minha amiga.
Sei o que você deve estar pensando, esse gordo é o cara, ou nossa como ele conseguiu falar tanta asneira em tão pouco tempo, pois bem para sua alegria ou infelicidade isso não aconteceu. Pelo menos toda essa dialogação socrática que gastou de toda a minha retórica não aconteceu. A minha história acabou falando com gerente e vendo que não daria em nada gastar todo o meu latim com ele. Com isso fui à livraria e entreguei o meu dinheiro cultural à outra cultura. E segui numa sexta feira chuvosa até o bar a fim de beber eu, a minha amiga e o Bukowski. Ela me sacaneou, riu de mim, eu a mandei para aquele lugar inúmeras vezes. A cerveja foi boa, a companhia dela idem, dada a hora dela, ela partiu a casa dela, e eu a minha com a minha cultura em mãos.
Minha noite terminou com eu defecando e discutindo com o Bukowski, não estava mais tão nervoso, não estava mais tão puto da vida. Olhei pelo lado bom, pelo menos falta pouco e como todo bom carioca eu dei a volta por cima.

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